Trazida ao Brasil pelos colonizadores europeus, a celebração do ciclo junino atravessou gerações e se consolidou no calendário dos brasileiros. Em abril deste ano, as festas juninas passaram a ser oficialmente reconhecidas como manifestação da cultura nacional por meio da Lei nº 14.555, seguindo a proposta apresentada pelo atual governador de Sergipe, Fábio Mitidieri, enquanto deputado federal.
Especialmente no Nordeste, muito mais que uma data comemorativa, os festejos fazem parte da identidade cultural e são muito aguardados pela população. A professora, historiadora, folclorista e escritora Aglaé Fontes explica que as homenagens aos santos Antônio, Pedro e João surgiram na Europa, tendo resquícios do Solstício de Verão, que acontecia no Velho Continente antes do cristianismo, quando se agradecia aos deuses pela fartura da época. “Comia-se, bebia-se bem e se louvava aos santos. Em vez de agradecer aos deuses, se agradecia aos santos, porque plantou e sua roça deu. Então, há uma espécie de transferência, de um véu cristão sobre uma festa que era pagã”, destaca a pesquisadora sobre os atos de fé acrescidos da parte social da celebração.
A historiadora ressalta que os festejos juninos têm origem tipicamente rural. “No Nordeste, é época de fartura e, quando você tem fartura, você se alegra e a forma de agradecer é com o louvor, as novenas, trezenas, esse é o lado religioso, que vem da religião católica. Coincidentemente, é o tempo de maior fartura, o que a gente planta e tem no mês de junho, o milho, a macaxeira, o amendoim, a laranja, tudo isso compõe a nossa mesa junina, então esse é o lado social nordestino que entrou”, conta.
Aglaé Fontes é autora dos livros ‘São João dormiu, São Pedro acordou’ e ‘São João é coisa nossa’, que retratam os festejos em Sergipe. A escritora relata que, em Sergipe, entre os elementos típicos do ciclo junino estão as novenas, as trezenas e os louvores aos santos. “E, hoje em dia, o forró que já se incorporou à nossa história cultural, e também a alimentação”, completou.
Em suas obras, a professora, que também é membro da Academia Sergipana de Letras (ASL), lembra que, na capital sergipana, Aracaju, os festejos iniciaram de forma espontânea, nas frentes das casas, em uma época que a cidade ainda tinha muitos traços rurais, com sítios onde hoje são regiões urbanizadas, a exemplo da atual Avenida Hermes Fontes. “Nesses sítios, as pessoas amigas se reuniam, dançavam, festejavam, depois veio o samba de coco, que é de influência africana”.
Segundo a escritora, é nesse período, em Aracaju, que a festa começa a se popularizar, a partir, especialmente, do início das celebrações na Rua São João, que teve origem, há mais de um século, com as novenas realizadas por duas irmãs que tinham a imagem de São João de Deus e moravam em um sítio, na região chamada ‘Matinha dos Caboclos', localizada atualmente nas proximidades da rua Manoel Preto, no bairro Santo Antônio. As novenas atraíam os moradores das redondezas, como aponta Aglaé.
“A partir dessas novenas foram surgindo os festejos, porque quando terminava a novena, que todo mundo rezava para São João de Deus, eles tinham comida que faziam e todo mundo dividia tudo, numa verdadeira integração de uma comunidade que festejava o santo e depois festejava a vida. Tanto que, anos depois, na associação que veio a nascer naquela área, teve esse nome de São João de Deus. A homenagem, o louvor e também a festa com as comidas feitas não tinha autoridade pagando nada, a festa era do povo, feita pelo povo e o louvor era feito por pessoas que moravam naquela localidade. Depois, os festejos tomam um formato mais social. E então começava a criar as comissões com as pessoas da própria comunidade”, informa.
Quadrilhas
Com o tempo, os festejos na Rua São João ganham força também com as quadrilhas juninas. De acordo com Aglaé, historicamente, as quadrilhas também nascem com influência da cultura europeia e da elite brasileira. “Nas fazendas, quando as filhas dos donos dos engenhos se casavam, tinha festa e dança. E o que que se dançava? Era a quadrilha, porque queriam imitar a França, a quadrilha francesa, marcada em francês. A classe popular começou a imitar a dança e foi fazendo a quadrilha do jeito dela. E o que sobrou do casamento é a presença do noivo e da noiva dentro da quadrilha, que são figuras simbólicas”, ressaltou.
Em Aracaju, é na Rua São João, em meados de 1950, que as quadrilhas começam a se organizar, a partir da iniciativa de entusiastas como o mestre Calazans, que incentivava a enfeitar as ruas, a colocarem fogueiras nas portas e a dançar o samba de coco.
Patrimônio cultural
Para Aglaé, é importante que esses saberes sejam passados entre as gerações já que marcam a formação identitária dos sergipanos. “É a educação patrimonial. Os lugares, os costumes, as formas como a gente vê as coisas, compõem o nosso patrimônio cultural. É igual a ter herdado uma casa ou fazenda, mas é patrimônio também as cantigas de roda, o que está na história da gente. A festa da Rua São João, por exemplo, é uma história que precisa ser sempre contada para não ser esquecida. Isso tudo compõe aquilo que a gente chama de nossa identidade cultural. Eu não quero me parecer com alguém que é de outro estado, quero me parecer com o meu estado, seja com a minha comida ou com o meu jeito de falar”, defende.
A professora reforça que saber como se constituiu o acervo cultural de um povo é fundamental para o seu pertencimento e reconhecimento. “Você vê toda uma transformação de uma determinada época, socialmente, quando se estuda o ciclo junino. Culturalmente, eu quero saber. E, a cada hora, saber mais. E quero que a outra geração não seja uma uma geração que nunca viu nem sabe o que é, por exemplo, um candinheiro, por não precisar mais. Isso tudo, mesmo que eu não use hoje, eu quero saber, porque faz parte da minha cultura e da minha identidade”, argumenta.
Nesse contexto de repassar saberes e preservar a identidade cultural sergipana, as apresentações do tradicional grupo de teatro de bonecos Mamulengo de Cheiroso se conectam às programações dos festejos juninos em Sergipe. “A gente está ligado à cultura popular, e os festejos juninos fazem parte deste hemisfério. A gente sempre trabalhou nos folguedos, nas danças e o ciclo junino é muito rico, nas tradições, na indumentária, nos festejos, na decoração, na música, e a gente tem a quadrilha de bonecos e canta muita coisa do São João. Enfim, o ciclo junino faz parte da gente e, além de tudo, nós somos sergipanos”, acrescenta o líder do Mamulengo do Cheiroso, o ator e bonequeiro José Augusto Barreto.